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Encontrando valor na perda

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Escrevo este post algumas horas após receber a triste notícia do falecimento de minha avó materna. Apesar de o momento ser de grande comoção acredito ser possível refletir sobre a possibilidade de extrair algo de positivo quando somos acometidos por estas inescapáveis certezas da vida.

É fato que como seres humanos nossa existência física se resume ao período de tempo entre nossa concepção e a morte. Após este evento final, tudo que acontece “do outro lado da vida” é especulação – em toda a humanidade ainda não se registrou nenhum episódio que gere consenso sobre o que acontece no post-mortem. Para os que têm fé, a morte é apenas o rito de passagem para uma etapa transcendental da vida e, esta nova fase, vem acompanhada de características muito mais virtuosas do que nossa limitada e sofrida passagem terrena. Acreditando nessa ideia, nosso coração pode ser melhor confortado diante da dor da perda. Entretanto, mesmo sabendo das promessas de bonança - a que fazem direito aqueles que souberam levar uma vida harmoniosa - nos acompanhará permanentemente à certeza de que nosso mundo nunca mais será o mesmo com a ausência deste convívio.

 É interessante destacar que nos primórdios da organização do ser humano em sociedade está o ritual da morte. Escavações arqueológicas confirmam que um dos fatores que contribuíram para a formação dos primeiros aglomerados humanos fixos a determinado local foi justamente a necessidade de permanecer próximo de onde estariam depositados os corpos dos entes queridos. Neste sentido, é legítimo afirmar que o respeito e o culto aos mortos permanecem em nossa sociedade desde sua origem. Mesmo sabendo que a morte é a única certeza que nos acompanha durante toda a vida, sempre que perdemos alguém próximo nossa existência fica marcada. Quando as marcas são positivas, nossa missão é não deixar que o legado de ensinamentos do ente ausente se perca sem a sua presença física.

  Minha avó foi mãe de 15 filhos (isso mesmo, não é erro de grafia, eram outros tempos!), acompanhou o crescimento de mais de 70 netos, e atualmente a quantidade de bisnetos ultrapassa o número de dedos das mãos. Considerando as pessoas de parentesco sanguíneo direto, cônjuges e agregados qualquer evento social na minha família ultrapassa fácil o numero de 250 convidados. Certamente, cada um destes indivíduos estabeleceu sua convivência com a matriarca da família em intensidades diferentes, mas ninguém irá conseguir ficar indiferente a sua ausência.

Eu sou o neto mais velho desta família e fui privilegiado por ter sido criado com presença constante da minha avó. Por esse motivo, o titulo de “menino criado com a avó” nunca me ofendeu, mesmo sabendo do sentido pejorativo desta expressão. Reconhecendo que a morte é algo ainda irreversível, meu lamento maior é admitir que de agora para frente nenhum outro ser no mundo conhecido poderá desfrutar do imenso prazer que foi o convívio presencial com a vovó. Agora que sou pai, todas as experiências positivas que acumulei durante a vida, tinha intenção de compartilhá-las com meus filhos, infelizmente desfrutar do carinho desta “mãezona” não será mais possível. Neste ponto me pergunto: será este o fim de toda uma história? Os ensinamentos, esperanças e crenças sessarão com este evento? Certamente não.

Talvez esse seja o maior valor que uma perda nos proporciona: recuperar na memória e perpetuar os momentos inesquecíveis na presença de nossos entes queridos. É do senso comum assumir que todo mundo é santo depois que morre, mas essa tendência em enxergar o lado positivo das pessoas infelizmente é mais comum quando se é tarde demais. A sensação de que algo poderia ser dito ou realizado ainda em vida para enaltecer o prazer da companhia reforça o peso da ausência.

De acordo com a filosofia grega - que funcionou como base para a mentalidade ocidental - o maior desafio de um individuo era conquistar a sua eternidade através de obras e de seus descendentes. Perpetuar a existência de uma pessoa em seu legado é, sem dúvidas, uma forma de vencer a morte. Assim, identificar traços físicos ou de personalidade dos avós (no caso bisavós) em nossos filhos é uma das formas de preservar viva a memória destes. Experimente recuperar imagens, sensações e situações que envolvam uma pessoa ausente. Esta é uma tarefa que, quando realizada de forma singela e natural se revelará prazerosa e reconfortante. Em momentos no qual a tristeza da perda insiste em permanecer, as recordações alegres espantam a saudade e funcionam como brasa para evitar que o fogo vital do ente ausente deixe de existir. Manter viva na memória uma recordação alegre é sem dúvida uma ação que supera a tristeza da morte.

Termino com a frase dita pela minha filha Laura, concluídas as cerimônias de despedida da vovó. Ao ver a foto dela no notebook e sem entender o semblante de tristeza que pairava no ar, ela disse: - Boa noite “Bisa”, dorme com Deus!

Homenagem a Maria Lourenço Braga Santos (Vó Lia): filha delicada; mãe carinhosa; avó fascinante; bisavó apaixonada.



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